O embaixador do Xingu
Sua missão é conciliar as demandas da vida moderna com as tradições indígenas
Os
50 anos do Parque Nacional Indígena do Xingu, completados em 2011,
lançaram nova luz no território habitado por mais de 5 mil índios
de 16 etnias alinhadas pelas águas do rio homônimo, a cada dia mais
pressionado pelo avanço da agricultura no norte do Mato Grosso. O
cacique Aritana, de supostos 56 anos, chefe dos iaualapitis e
presidente do Conselho da Liderança do Xingu, fala os principais
grupos linguísticos do alto Xingu – aruak, tupi e karib – e o
português, que aprendeu com os irmãos Villas Bôas, mentores da
demarcação da reserva nos anos 1960. Chefe de linhagem, Aritana
teve formação rigorosa para atingir o ideal da cultura xinguana: é
calmo, generoso e diplomata que procura o diálogo. Hoje, pouco sai
de sua aldeia, à beira do rio Tuatuari. Para ele, conciliar as
demandas da vida moderna com as tradições é um dos desafios do
parque no século 21. “Temos de habitar os dois mundos”, diz.
Quais
são suas lembranças dos irmãos Villas Bôas?
Orlando
e Cláudio ficaram mais tempo no Xingu. Foram 40 anos. Também
conheci Álvaro, que trabalhou no parque e depois em São Paulo, no
escritório da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Orlando me
conheceu bebê; eu o considerava um avô. Ele ficava no alto Xingu
enquanto Cláudio se baseava no baixo Xingu, entre os povos caiabi,
suiá e juruna. Cláudio era um homem calmo. Quando estava
pacificando tribos não contatadas, por exemplo, usava apenas um
revólver na cintura para, em caso de perigo, atirar para o ar.
Jamais para atingir os índios.
Já
Orlando sempre conversava muito comigo, me orientava. Nenhum índio,
afinal, sabia como eram os costumes dos caraíbas [não indígenas].
Uma vez, um padre veio ao Xingu e a gente não entendeu o que ele
queria. Ele conversou muito com meu pai. Falou de nossos costumes,
nossa cultura, e por que queria mudar isso, nos dando roupas e nos
ensinando a rezar. Como meu pai não entendeu bem a conversa,
resolveu chamar Orlando, que avisou ao padre que ele não podia fazer
isso e o mandou embora.
Os
dois sertanistas sempre falaram coisas certas para os índios. Eles
tinham visão do futuro. Os dois faziam reuniões com todos os chefes
e falavam da demarcação, da necessidade de tomar conta de nossas
terras. Memorizei bem essas mensagens. Para eles, os caraíbas ainda
estavam longe, mas um dia ficariam bem perto de nós. Cinquenta anos
depois, esse dia chegou.
O
que significa para os índios os 50 anos do parque do Xingu?
Nossa
memória diz que vivemos nessas terras desde o tempo da criação do
mundo. Acreditamos nisso. Mas não existe mais aquela vastidão por
onde antes andávamos com plena liberdade. Para o bem e para o mal, o
parque nos trouxe um limite. As aldeias cresceram, dividiram-se e já
estão encostadas no limiar da reserva. Ainda assim, valorizamos a
demarcação, mesmo que comemorações nesse tipo de data não façam
parte de nossa tradição. Hoje, é preciso dizer que as fronteiras
do parque não garantem mais a nossa segurança, e temos sido
ameaçados pela expansão do agronegócio e pelas tentativas de
invasão dos madeireiros, posseiros e garimpeiros. Em alguns lugares,
fazendeiros já arrancaram estacas demarcatórias da Funai,
mudando-as de lugar para beneficiar seus empreendimentos. Fica o
aviso: desde sempre, toda a liderança do Xingu está unida para
lutar contra qualquer ameaça e, se for necessário, morrer por
nossas terras.
Quais
as diferenças mais marcantes na vida de vocês antes e depois da
chegada dos brancos?
Nossa
vida era bem mais tranquila antes. Naquela época, nosso pensamento
era outro, e a maior preocupação era a de sustentar as famílias,
cultivando as roças, plantando mandioca, pescando. Não dependíamos
dos outros. Assim fomos orientados pelos nossos pais e avós. Agora,
tudo mudou, e, em vez de falar no sustento de nossas famílias,
falamos em projetos. A Funai, que era muito forte na época dos
Villas Bôas, hoje quase não ajuda mais. Temos de resolver nossos
próprios problemas, e por isso fundamos várias ONGs. Muitos lugares
que consideramos sagrados ficaram fora da reserva, e o Iphan
[Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] está nos
ajudando a tombar alguns desses locais. Entre eles, o Avaskuru, ou
Sagihena, palco da primeira festa do kuarup
[em
homenagem aos mortos], e o Kamukuaka, local da primeira cerimônia da
furação da orelha. Ambas as áreas foram quase destruídas pela
ocupação de fazendeiros e pela construção da barragem Paranatinga
II.
Como
a construção de barragens e a implantação de grandes fazendas
afetam a vida no Xingu?
As
barragens de pequeno e grande porte deixam os rios mais rasos e
vulneráveis à contaminação por agrotóxicos, esgoto e lixo.
Antes, podíamos beber direto dos rios; hoje, as aldeias são
obrigadas a furar poços artesianos para obter água potável. Com o
desmatamento ao redor, animais como as onças começaram a fugir para
dentro do parque, enquanto várias espécies nativas de pássaros
estão desaparecendo. A população de tartarugas também está
diminuindo; para tentar recuperar sua população, cinco praias foram
isoladas, e ninguém mais pode coletar ovos dali.
Além
disso, as pessoas nas aldeias Matipu, Kalapalo e Nafuquá já escutam
o barulho forte dos tratores e máquinas usados pelos fazendeiros. É
um som que nos deixa muito assustados.
Edição
144/ Março de 2012 07/03/2012
Marselha: uma cidade para todos
Cada vez mais países europeus se tornam nações de imigrantes. Será a multicultural Marselha, na França, uma visão do futuro?
A
impressão que se tem, talvez verdadeira, é de que nenhuma regra
vinda de Paris passa incólume em Marselha. A capital da Provença
tem a merecida reputação de cidade rude e indócil, um porto que
atrai todo tipo de contrabando e de pessoas (algumas também
contrabandeadas). Ao longo dos séculos, a maioria chegou pelo mar e,
com alegria, se misturou, conspirou, brigou, acasalou, festejou e
bebeu sem pudor, sem desculpa. A cidade tem sido refúgio para quem
procura escapar de perseguição e pobreza.
Nos
últimos tempos, os muçulmanos vêm predominando em seu grande
afluxo de imigrantes, e hoje, ao olhar de uma das muitas praias
marselhesas para o outro lado do Mediterrâneo, na direção da
invisível costa norte-africana, quase se pode imaginar uma enchente
humana a caminho, pois os tumultos que se alastram pelo mundo árabe
empurram cada vez mais refugiados e desempregados para as costas
europeias.
Quem
dá ouvidos aos políticos de direita pode pensar que essa onda
imigratória significa um assalto do puritanismo islâmico, que
afrontará o modo de vida europeu e forçará todas as mulheres a se
vestir como noivas do Talibã. Mas então se percebe que muitas das
pessoas que disputam espaço nas areias de Marselha são de origem
africana e árabe e que as moças usam biquíni em vez de burca.
Graças à eficiência do transporte público local, em menos de 45
minutos chega-se de qualquer parte da cidade às praias marselhesas.
Assim,
durante vários meses por ano, ricos e pobres, brancos e negros,
africanos e árabes, muçulmanos, cristãos e judeus, todos encontram
seu pedaço de areia, tiram quase toda a roupa e se acomodam ao sol
da Provença para o convívio social – e a socialização. Pergunte
de onde eles vêm, e você ouvirá Argélia ou Marrocos, Turquia,
ilhas Comores ou até França. Mas a grande maioria dirá
simplesmente: Marselha.
Mais
países europeus estão se tornando nações de imigrantes, e
Marselha pode ser uma visão do futuro e até um modelo de
multiculturalismo. Não que seja fácil manter o equilíbrio. Em
particular, os incessantes conflitos no Oriente Médio enviam de
tempos em tempos frêmitos de medo a essa cidade francesa. “Durante
a Guerra do Golfo, em 1991, pensei comigo, as coisas vão explodir em
Marselha – por causa das imagens que entravam nas salas de
muçulmanos, através de suas antenas parabólicas”, diz Michèle
Teboul, presidente da sucursal na Provença do Conselho
Representativo das Instituições Judaicas da França (Crif).
“Dissemos que, se não fosse agora, não aconteceria nunca.” Não
explodiu. Líderes muçulmanos locais conseguiram acalmar os ânimos
em colaboração com outras figuras religiosas. Também em novembro
de 2005, quando o fogo grassou durante tumultos em quase todas as
demais cidades francesas que tinham conjuntos habitacionais populares
abarrotados de imigrantes, os muçulmanos de Marselha se contiveram.
Alguns
marselheses acreditam, com razão, que o milagre da paz social em sua
cidade se deve às praias, que servem como um grande cadinho de
culturas. Farouk Youssoufa, de 25 anos, cortejou Mina, sua mulher,
agora com 20 anos, na praia de Corbière, e hoje o casal frequenta a
praia do Prado. Youssufa nasceu em uma ilha francesa no arquipélago
de Comores, entre a Tanzânia e Madagáscar, e sua pele é tão
escura como a de negros africanos. Mina, de pele clara, nasceu na
França e é filha de imigrantes argelinos. “A geração seguinte
contém mais mistura”, diz Youssufa, que trabalha com meninos e
meninas de quase todos os tons de pele e origens étnicas concebíveis
em um centro cultural de uma das mais conturbadas áreas no norte de
Marselha. Na praia, sobretudo, “há muitas comunidades diferentes
que se misturam, se fundem”, diz ele em uma escaldante tarde de
maio. “Voilà: com o tempo, aprendemos a viver juntos.”
Mas
o voilà, uma expressão que virou tique nas conversas dos
marselheses, não é bem assim. O território neutro de sol e areia
tem seus limites na vida da cidade. Embora outros rituais também
unam os marselheses (por exemplo, a fanática torcida pelo time de
futebol local, o Olympique), quando o jogo acaba e o sol se põe na
praia, o preconceito pode aflorar. Há racismo em Marselha, aponta
Mina, inclusive entre muçulmanos. “Quando estamos em um lugar em
que há muita gente, não encontramos grandes problemas. Mas, se
vamos juntos aos bairros onde estão os árabes, ficam nos encarando
e alguns me insultam.” Ela morde os lábios e balança a cabeça.
O
caso de Mina levanta uma questão: Marselha é de fato um exemplo de
harmonia cosmopolita ou de uma sociedade à beira da agitação? A
resposta inquietante é: as duas coisas.
O
prédio da prefeitura de Marselha, com suas telhas da época de Luís
XIV, é uma construção discreta pelos padrões da administração
pública francesa. É descrito nos livros de viagem como “de
proporções modestas”. O mesmo não se pode dizer do prefeito que
ali trabalha. Jean-Claude Gaudin tem de largura quase o que tem de
altura, anda com o paletó trespassado aberto e o colarinho da camisa
listrada roxa desabotoado. Gaudin, de 72 anos, entra em seu gabinete
e se posiciona atrás da mesa como um urso guardando mel. Ocupa o
cargo desde 1995 e não parece inclinado a deixá-lo tão cedo.
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